sábado

Direitos de autor de uma verdadeira escritora

Já li isto um milhão de vezes...
E vou ler um milhão de vezes mais!


"Dá-me cinquenta razões para esquecer-te. Cinquenta razões para não mais perguntar por ti, nunca mais revolver-me em mórbida curiosidade. Para que desista do desejo incessante de saber das tuas voltas e revoltas, dos teus tiros e retiros, das tuas canções e redenções. Não, espera. Não me dês nada. Não mudemos a história. Deixa-te ficar sossegada, em casa, debaixo das mantas de Outono. Não quero que te canses. A partir de hoje, tudo o que pedir, pedi-lo-ei ao mundo.

O mundo que me ofereça razões pra que nunca mais te trepe na janela, para que não mais os pés me fujam até onde vives. Mas se cinquenta é um número redentor, então cinquenta são as tuas ruas. Não te cingirás nunca a uma avenida só, mesmo que desemboque num santo de braços fechados. Repara: tens a rua onde te reconheci pela primeira vez. A rua onde te beijei o nariz, te abracei os medos, te contei os dedos. Tens a rua que vai da cozinha ao teu quarto - caminho que tantas vezes partilhámos, entre cheiros de cabelo teu e tremuras das pernas minhas. És dona da rua onde Deus passou por nós numa tarde de chuva. Da rua onde esse mesmo Deus gritou que nos separaria. E após essa separação és dona de todos os lugares, como se depois de ti a cidade estivesse suja de impressões digitais. És dona do centro comercial onde me fazias bainhas nas calças, dona da parede onde pintei as palavras AMANHÃ FICA COMIGO, dos passeios que sujei de verde e de vermelho, das calhas de eléctrico que me vacilam o carro, do marquês que afinal é rei. Tu és dona.

Não te canses mais, menino perdido. Desiste de mim. Não sou mais que a fuga tua aos dias tristes. Fizeste de mim mulher-explosão. Mas eu, rapaz, não passo de ser quem sempre fui. Apenas quem não te queria.

Um dia desistirás tu de não saber-me. Um dia cinquenta paredes te cairão em cima, ou cinquenta tapetes se levantarão. E todos os momentos-eu que para debaixo deles atiraste - os cheiros meus, os olhares mais ternos, os gestos desconsolados - tudo te voltará. Um dia, talvez daqui a cinquenta anos, levantar-te-ás assustada. A meio da noite sem saber para que lado da cama cair. Lentamente porás um pé, depois o outro, nos chinelos alinhados no chão. Sentar-te-ás na borda da cama, com uma mão de cada lado do corpo, apertando os lençóis e os algodões. Farás de tudo para que o teu homem-pouco não acorde. Virar-lhe-ás as costas num gesto inato, de metáfora. Então, como num tique de memória, ver-me-ás entrar. O teu corpo estremecerá por saber-me vivo, eu, o cabrão que fizeras apodrecer, desaparecer, envelhecer, distorcer. E que no final mandaras matar. Afinal nada me tinha morto, nem sequer a arma da tua vontade. Afinal tinha sobrevivido ao tempo e à escuridão, ao teu voto de exclusão, à missão da chuva e dos tufões de Abril. De anos e anos antes. Continuava vivo, tão vivo que quase me sentias real, quase era eu o teu homem de sempre. Quase não tinhas errado.

Não avances mais. Não vejas um futuro que não tens que ver, que não é teu e que nem nunca existirá. Deixa-te ficar quieto no teu canto, não me entres mais por dentro. Sai de uma vez. Eu sem ti sou tudo.

Nem tu, nem ninguém. Nem sequer cinquenta pastilhas na minha mão, esperando para ser engolidas. "Pastilhas para acalmar, para controlar", dizia o médico e diziam os teus amigos. Pastilhas que me roubaram vontade mas nunca a dignidade, que me roubaram velocidade mas nunca a intensidade. Nem tu, nem ninguém, nunca me roubarão de ti. Cinquenta tijolos podem voar, fazendo pontaria ao meu peito. Cinquenta amigos podem dar-te razão. Cinquenta canções podem perder-se pelo caminho, as que eram minhas e eram tuas. Cinquenta objectos podem trocar de posição - o saleiro pelo pimenteiro, o telefone pelo vidro sujo, até o jornal pelo prego antigo. Nunca nada me fará parar.


Tu paraste já, há tanto tempo. Há anos que não sei e ti, há anos que as vozes inoportunas não fogem para o tema teu. O mundo aprendeu a controlar-se, a não deixar que o tu e o eu se encontrassem mais, nem mesmo nas coincidências. Já ninguém se lembra de nós. E por isso, Ser descoordenado, não jogues mais a sorte que e caiu em cima. Esqueceste-me. Aceita que me esqueceste.

Vem. Grita-me cinquenta vezes que nunca me pertenceste. Grita o quanto me iludi nas noites tristes em que me passavas a mão no peito, quando o meu coração batia acelerado e eu tinha medo de morrer. Grita que dos teus dedos não saiam analgésicos, calmantes, anti-oxidantes e suavizantes. Grita que não me abraçavas com força, tanta que se te cortava o ar. Que não encostavas a testa na minha e dizias "não me largues", que não me fixavas os olhos por uma hora e cinquenta minutos, que não me rezavas no ouvido, que não me amavas quando ninguém via ou ninguém ouvia.
Por ti, meu amor perdido, porque tu partiste, os dentistas especializaram-se no fabrico de caixões. As mulheres da fruta passaram a apregoar taludas, as lojas de chineses deixaram de vender caixas inúteis, os professores de yoga licenciaram-se em química. Depois de que te foste. até o Quarteto deixou de ser cinema.

Acaba. Acaba com isso agora.

Tu amavas-me desajeitadamente, mulher. Roubavas-me a mão em lugares escuros, puxavas-me para a cama em noites de humidade. Transformavas Lisboa e Barcelona em cidades tropicais, tanta era a água que te saía do corpo quando me deitavas. Suavas antes de tempo, mas tínhamos começado e tu já quase no fim, um pé meu tocava o teu e já tu ofegavas de desejo.

Por favor, não entres por aí. Vais mentir descontroladamente. Eu nunca sequer soube o teu nome, quanto mais o teu cheiro.

Do meu cheiro sabes à distância. É impossível que aterre em Lisboa e da tua mão não caia o lápis, o alicate, o bisturi. Que não te pares por um segundo, que não te sintas estranha em território teu. É impossível que em dias de regresso meu não tenhas medo de sair à rua ou tocar o chão.

Pára de enunciar razões e reciclar tentações. Tu nunca me exististe. Levei cerca de cinquenta minutos, talvez segundos, a esquecer-te e a expulsar-te. Não consigo entender porque raio ainda te lavas no sabão dos anos passados.

Deram-me cinquenta razões para deixar-te. Para esquecer-te e não mais desenvolver-te. Para partir, desistir, nunca mais reincidir. Os homens preocuparam-se realmente, fizeram manifestações na minha porta, de cartazes levantados e hinos bem preparados. Levantaram braços e fecharam punhos, ameaçando-me, arrastando-me pelos colarinhos, deitando fogo a imagens tuas. Propuseram-me trocar-te por cinquenta mulheres bonitas, e tu que nunca sequer foste bonita, era eu quem tinha olhos turvos de melancolia. Ofereceram-me dólares e outros tostões, mandaram parar comboios e aviões. Só para que me fosse. Diziam eles que o amor que levava era arrasador, excessivo e aniquilador. Entristecia povos e alentava a solidão, trazia mudanças de clima e defraudava sociedades ecologistas.

Parti, sim. Mas não por cinquenta razões. Não por respeito a ti ou respeito a mim, nem seque por respeito aos animais que barafustavam.
Eu parti por respeito à cidade. Por respeito à calçada gasta, às pedras polidas por pés arrastados. Aos cabos eléctricos que movem transportes, às febras de Junho e à cerveja entornada. Parti por respeito ao cheiro a café que sobe as ruas em manhãs geladas. Ao velho que na avenida diz adeus, sem distinção ou sem razão. Ao poeta, ao desenhador e ao jardineiro. Ao pregão e ao ladrão. Eu parti por respeito ao manjerico, às torradas cortadas em três, ao pousar dos pombos e ao voar das migalhas. Aos pátios escondidos, às laranjeiras acolhidas, às estátuas de mortais. À luz do rio. À cor da ponte. Meu amor antigo, que saibas esta única verdade: viver Lisboa sem ti, mas querer ainda estar contigo, é como amar a duas mulheres ao mesmo tempo. E o meu coração nunca foi tão grande."

O Dever de Um Homem por Matilde Campilho na Egoísta 50, de Junho de 2008.